Pode-se dizer que foi mais uma semana normal segundo os parâmetros de normalidade da administração Donald Trump. O presidente americano entrou em rota de colisão com a chanceler alemã Angela Merkel – ele acusou a Alemanha de pouco contribuir financeiramente para a Organização do Tratado do Atlântico Norte -, anunciou que os Estados Unidos ficarão de fora do Acordo de Paris, que prevê a redução da emissão de gases de efeito estufa, e perdeu assessores no escândalo que envolve a transmissão de informações de seu governo para os russos. Uma circunstância, porém, tornou ainda mais doídas as últimas trapalhadas do presidente, embaladas que foram pela nostalgia de um tempo em que a América e metade do mundo viveram sob o comando do ex-presidente John Kennedy, o mais jovem a assumir a Casa Branca e um dos mais populares da História.
Na segunda-feira 29, vários eventos lembraram os cem anos de seu nascimento e evocaram as lições do rei de Camelot, título pelo qual Kennedy ficou conhecido, numa alusão à lenda de Arthur e seu reinado idílico pontuado por beleza, bravura e justiça. Kennedy, claro, não foi a representação na Terra do cavaleiro chefe da Távola Redonda, mas como o líder que brigou pela igualdade de direitos entre brancos e negros e que soube ter coragem para não levar o planeta a uma guerra nuclear certamente teria muito a ensinar em mundo convulsionado pela ascensão do preconceito, desigualdade social e guerras.
Um dos mais completos retratos da vida do ex-presidente está registrado na exposição “Visionário Americano: A vida e os tempos de John Kennedy”, em cartaz no Smithsonian American Art Museum, em Washington. São 77 fotografias por meio das quais enxerga-se seu passado antes da política, na infância confortável típica da família abastada da qual fez parte, durante a campanha eleitoral que o levou à presidência, derrotando o republicano Richard Nixon, e, depois, à frente da Casa Branca. Já casado com a ex-primeira-dama Jacqueline Kennedy e pai de dois filhos, John Kennedy Jr. e Caroline, Kennedy encarnou nesses tempos o ideal americano de riqueza e beleza. Jovens, lindos e cultos, ele e Jackie eram tudo o que a América queria ser. “Eles representavam os melhores elementos do caráter americano”, disse Stephen Kennedy Smith, sobrinho do ex-presidente e curador da mostra.
Especialmente três dos retratos transmitem essa simbologia. Um deles, de 1953, traz Jackie e o ex-presidente em primeiro plano, elegantes e felizes em um dos poucos registros públicos do casal em lua de mel. Os outros dois flagram a naturalidade com que parecem se comportar diante da responsabilidade que o comando da Casa Branca exige. Em um, Jackie caminha ao lado de Kennedy em direção à cerimônia de posse, em janeiro de 1961, à frente de um séquito. No outro, Caroline e John Jr. são observados pelo pai enquanto brincam no salão Oval da residência oficial dos chefes de estado americanos. É como se a sede do governo da nação mais poderosa do mundo tivesse sido feita para eles.
LÍDER NA GUERRA FRIA
Da posse de Kennedy até seu assassinato, em novembro de 1963, em Dallas, a Casa Branca transformou-se. Arejou-se, muito devido à impressão digital de Jackie. Cosmopolita e amante das artes, imprimiu à rotina de Washington, até então marcada pelo jogo bruto político, uma sofisticação intelectual nunca vista antes na capital americana. Kennedy, por sua vez, cercou-se de assessores igualmente jovens – o mais importante deles, seu irmão Bob -, a maioria saída das melhores universidades americanas e embalada pelos desejos de reformas sociais e políticas que marcaram a década de 1960. Para quem olhava de fora, com uma ponta de lirismo, assemelhava-se mesmo a um reinado de contos de fada. Jovens cavaleiros, lindas damas e nobres ideais.
Kennedy soube entender seu tempo. Percebeu rapidamente que, no mundo pós-guerra, as mulheres haviam adquirido um novo papel quando os maridos foram ao combate e, agora, não queriam mais lugares coadjuvantes. Uma de suas medidas foi a nomeação da ex-primeira-dama Eleanor Roosevelt como presidente de uma comissão encarregada de equiparar direitos entre os gêneros. Também se posicionou em defesa das liberdades civis para os negros, contribuindo para o fim da política de segregação racial em vigor. Ela só ocorreu oficialmente depois de sua morte, mas o apoio do ex-presidente foi fundamental.
No âmbito internacional, foi o principal opositor do avanço comunista durante a Guerra Fria, quando Estados Unidos e União Soviética disputavam o controle de territórios como num jogo de xadrez. Errou em 1961 ao permitir a desastrada ação de infiltração de agentes na Cuba comunista de Fidel Castro – o objetivo era derrubar o comandante -, mas agiu magistralmente no ano seguinte, durante a crise dos Mísseis. Foram treze dias em que o mundo suspendeu a respiração enquanto Kennedy e o líder soviético Nikita Kruschev mediam forças para ver quem cedia primeiro: se o russo, interrompendo a instalação de mísseis em território cubano, ou o americano, que exigia a retirada das armas. Kennedy venceu e a ameaça de uma guerra nuclear entre as duas potências foi afastada.
Como ocorre com as grandes figuras da História, muitas vezes o mito supera as contradições do homem. Assim foi com o ex-presidente. Ao mesmo tempo em que defendeu respeito às mulheres, traiu Jackie várias vezes. Em nome da defesa da democracia, assentiu no planejamento de ações militares em outros países para tirar do poder líderes não alinhados com os EUA. Mas a linha mestra de seus ideais permanece inspiradora. “Sua defesa da igualdade entre os homens, da liberdade, da abertura da América aos imigrantes e da liberdade religiosa faz parte do legado que ele nos deixou”, disse Barbara ISTOÉ Barbara Perry, professora de Ética do Onshite Burkett Miller Center e uma das maiores estudiosas do legado Kennedy. Que bom seria se Donald Trump e outros governantes ou estudassem um pouco mais.
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